Nos últimos cinco anos, o Brasil caminhou perigosamente de uma Lei de Crimes da Internet, que praticamente sepultaria o livre acesso dos usuários à rede, para uma Constituição da Internet, que garantirá os direitos e definirá deveres do usuário, diz deputado petista
A dimensão do Marco Civil da Internet, aprovado pela Câmara e na agenda de votação do Senado, foi obscurecida pelas duas semanas de intensa queda-de-braço entre o governo e parte de sua base parlamentar.
Não faz justiça ao Marco Civil apontá-lo como a razão do conflito – cujas motivações são meramente eleitorais – ou simplesmente como uma vitória do governo sobre rebeldes. O projeto aprovado é muito mais do que isso: é a vitória de uma concepção libertária da internet, que desponta como referência mundial de regulação da rede, e uma proposta que derrotou a ameaça obscurantista que vagou pelos corredores do Congresso por quase 15 anos. Dizer que o projeto aprovado limita a liberdade na rede, como o líder de um partido de oposição chegou a argumentar no encaminhamento da matéria para negar os oito votos de seu partido à lei, é desinformação ou má-fé.
O texto aprovado pela Câmara foi o produto de uma grande articulação nacional de parlamentares, movimentos sociais e figuras envolvidas na defesa de uma legislação que garantisse a neutralidade da rede (não discriminação do tráfico de conteúdos) e direito à privacidade do usuário e inviolabilidade e sigilo de suas informações, e que passou a contar com o apoio dos governos progressistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
O movimento final, e vitorioso, foi uma reação à aprovação pelo Senado, em 2008, de substituto do então senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) a projeto apresentado em 1999, na Câmara. O relatório do senador criminalizava praticamente todo o uso da internet, inclusive uma banal troca de e-mails. A proposta do tucano abrigava reivindicações de bancos e empresas de cartões de crédito e o lobby de empresas de certificação digital – e o então senador mineiro levou as exigências de segurança a um extremo tal que o próprio uso da rede estaria inviabilizado, se sua lei fosse aprovada.
O relatório Azeredo era uma mera definição de crimes, que passava ao largo dos direitos de usuários e ignorava o artigo 5º da Constituição – aquele que define com clareza, desde a Constituinte de 1988, o direito do cidadão à informação, à privacidade e à igualdade.
Na Câmara, eu e um grupo de deputados do PT, do PCdoB, do PSB e do Psol bloqueamos a votação do projeto aprovado no Senado e nos unimos a setores da sociedade que reivindicavam um Marco Civilda Internet, em contraposição a uma lei de tipificação de crimes digitais. Para enterrar o AI-5 digital de Azeredo, adotamos a estratégia de obstruir a votação do projeto na Câmara e, simultaneamente, construir uma alternativa ao texto que vinha do Senado: uma lei equilibrada que punisse apenas os atos praticados por criminosos na internet. Dessa articulação, resultou um projeto para punir crimes da internet de minha autoria, que se tornou uma lei perfeitamente compatível com o marco civil, cujos termos começavam a ser construídos pela sociedade civil.
Em 2009, o presidente Lula acatou a reivindicação dos movimentos sociais, feitas no Fórum Internacional de Software Livre, e orientou oficialmente sua bancada na Câmara a barrar o projeto Azeredo e iniciar um processo de debate com a sociedade para definição de um texto que fosse, de fato, um marco regulatório. Por meio de ferramentas digitais, o Ministério da Justiça coordenou uma ampla consulta pública sobre o tema. Em 2011, quando eu era líder do PT na Câmara, o governo enviou o projeto do Marco Civil para a Câmara. Desde então, o deputado Alessando Molon (PT-RJ) conduziu um trabalho de relator que consistiu em mediar entendimentos para produzir um texto final que fosse o mais inclusivo e democrático possível.
Este é um trabalho que se estendeu ao longo dos últimos cinco anos. Nesse período, o Brasil caminhou perigosamente de uma Lei de Crimes da Internet, que praticamente sepultaria o livre acesso dos usuários à rede, para uma Constituição da Internet, que garantirá os direitos e definirá deveres do usuário. A proposta de Azeredo, aprovada na madrugada do dia 10 de julho de 2008 pelo Senado, tornava crime obter ou transferir dado ou informação disponível em redes de informação sem autorização da fonte, obrigava a identificação dos usuários que trafegassem por serviços brasileiros e até tornava crime a propagação de vírus, mesmo sem intenção dolosa.
O projeto relatado por Molon, e aprovado agora na Câmara, tem como ponto fundamental a neutralidade da rede, o que impede, por exemplo, que provedores de acesso discriminem usuários mais pobres, impedindo o acesso a conteúdos que os mais ricos tenham acesso.
Essa virada democrática na regulamentação da internet brasileira dará também uma enorme contribuição ao debate internacional sobre o tema. Quando relator da matéria, o senador Eduardo Azeredo reivindicava que o seu projeto fosse o modelo de regulação da web dos países vizinhos. Hoje, a referência será uma lei democrática.
Dias antes da votação do marco regulatório pela Câmara, na semana passada, o fundador da internet mundial, Tim Bernes Lee, disse que o Marco Civil da Internet brasileiro, se aprovado, seria “o melhor presente possível para os brasileiros e para os usuários da web em geral”. “O relatório reflete a internet como deveria ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada, onde os usuários são o motor da colaboração e inovação”. Além disso, salientou, “a lei garante direitos humanos como privacidade, cidadania e a presença da diversidade e do propósito social da web”.
O legado da experiência participativa para a construção do marco regulatório da internet, e a própria lei dela resultante, será de grande contribuição para o Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Internet, que ocorrerá nos dias 23 e 24 de abril, no Rio. O encontro ocorrerá no Brasil por solicitação da organização não-governamental ICANN, órgão internacional responsável por estabelecer regras de uso da internet mundial, e em função das posições firmes assumidas pela presidenta Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU, contra as práticas de violação de informações de governos e cidadãos pelos Estados Unidos.
O Brasil passa a ser um protagonista no debate sobre a web internacional, graças ao fato de ter enfrentado os problemas impostos pelas novas tecnologias aos governos e aos cidadãos, sem que tenha se deixado seduzir por legislações restritivas de liberdade.
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