sexta-feira, 19 de setembro de 2014

MPF quer restringir uso da cota parlamentar

Em ação na Justiça, MPF contesta ressarcimento de despesas dos parlamentares por contratações que deveriam ser objeto de licitação. Para procurador, Congresso dribla a Constituição e a Lei de Licitações com “uso indiscriminado” do cotão


Saulo Cruz/ABr
MPF quer licitação para compra de combustível, divulgação do mandato e contratação de segurança
A Procuradoria da República no Distrito Federal quer proibir a Câmara e o Senado de reembolsar, mediante apresentação de notas fiscais e comprovantes, determinadas despesas feitas por deputados e senadores. Em ação civil pública protocolada na 20ª Vara Federal, o procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes questiona a utilização da Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar (Ceap), o chamado cotão, para a cobertura de gastos com a contratação de bens e serviços em que se exige a abertura de licitação.
O procurador argumenta que o Congresso Nacional contraria a Constituição e a Lei de Licitações ao ressarcir os parlamentares por despesas “ordinárias”, “previsíveis” e “rotineiras”, como a compra de material para consumo em escritórios, a aquisição de combustíveis e lubrificantes para veículos, a contratação de segurança particular e a divulgação da atividade parlamentar.  Nesses casos, o procedimento licitatório é obrigatório por lei, observa. Ele pede, na Justiça, que a Câmara e o Senado parem de reembolsar deputados e senadores com gastos dessa natureza e passe a realizar licitação para esses bens e serviços.
Só no ano passado, de acordo com o Ministério Público Federal (MPF), o Congresso gastou mais de R$ 207 milhões com reembolso de despesas dos parlamentares.  Para o MPF, apenas os gastos considerados “imprevisíveis”, como a locação de imóveis ou veículos, a compra de passagens aéreas e o pagamento de hospedagens, contas telefônicas e assinaturas de publicações, continuariam sendo ressarcidos pelo cotão.  Esse tipo de despesa, afirma Anselmo, está livre de licitação.
Sob investigação
O valor da cota é definido conforme o tamanho de cada bancada estadual. Os estados que mais recebem verbas são Roraima, Acre, Amapá, Ceará, Pernambuco e Pará. Apenas na Câmara, considerando-se os atuais valores, essas despesas reembolsáveis podem chegar até a R$ 18 milhões por mês , ou R$ 216,6 milhões por ano, calcula o MPF. No Senado, o limite pode bater em R$ 33,7 milhões. Ou seja, somadas as duas Casas, os gastos poderiam passar dos R$ 250 milhões por ano.
A ação civil pública (veja a íntegra) movida pelo Ministério Público Federal é desdobramento de um inquérito instaurado pelo próprio MPF para apurar a legalidade do uso da verba no Congresso. “Por meio de tais cotas estão sendo ressarcidas, com recursos públicos federais, despesas que poderiam ser planejadas e contratadas de forma mais eficiente e impessoal pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, por meio do procedimento licitatório previsto na legislação”, escreve Anselmo Henrique.
Futebol e sexo
Como mostrou na quinta-feira (27) o Congresso em Foco, a Câmara paga até gastos dos deputados com pacotes recheados de TV por assinatura, com direito a pay-per-view de futebol e até canal pornô. O procedimento para o reembolso é simples: basta o gabinete apresentar um formulário específico juntamente com a nota fiscal da compra ou serviço. Para o MPF, a falta de critérios para a prestação dos serviços favorece o uso indiscriminado da verba por deputados e senadores.
Por decisões internas, a Câmara e o Senado fazem análise apenas dos aspectos relativos à regularidade fiscal e contábil das prestações de contas dos parlamentares para autorizar o ressarcimento das despesas.  Os técnicos examinam somente se o serviço contratado se enquadra entre aqueles alcançados pelo cotão ou não.
“Dessa forma, não oferece qualquer garantia de que os bens e serviços supra descritos sejam contratados de forma eficiente e impessoal. A mera apresentação de nota fiscal pelo parlamentar já garante o ressarcimento de despesas que, como se percebe, poderiam ser executadas de forma concentrada pela própria Câmara com ganho de economicidade, impessoalidade e transparência, com o respeito das regras legais que exigem a licitação para tais execuções de despesas públicas”, sustenta a ação.
Campeões do cotão
O MPF destaca que a realização de licitações para casos hoje cobertos pela verba parlamentar já está prevista na Constituição Federal e na Lei de Licitações, que pregam a observância dos princípios de isonomia, impessoalidade e moralidade na contratação de serviços e compras no setor público.
Desde o início da atual legislatura, 12 parlamentares já receberam da Câmara, na forma de reembolso, R$ 1,4 milhão cada por despesas atribuídas ao mandato, segundo levantamento feito pelo ativista digital Lúcio Batista, o Lúcio Big, colunista do Congresso em Foco. Por meio de uma iniciativa batizada por ele de Operação Política Supervisionada (Ops), Lúcio recebe de internautas de todo o país informações sobre o uso do cotão nos estados. Alguns desses casos foram apurados e objetos de reportagens publicadas pelo site.
Lúcio Big acionou o Ministério Público Federal com um dossiê sobre o uso da cota por 23 parlamentares. Já ao Tribunal de Contas da União ele apresentou duas denúncias contra congressistas pelo mesmo motivo.
Violações às regras
Para o procurador, o ressarcimento de despesas que deveriam ser objeto de licitação viola regras constitucionais e legais de exigência de licitação e os princípios de isonomia, impessoalidade, moralidade, eficiência e supremacia do interesse público. Anselmo Henrique diz que as licitações serviriam como prevenção a atos de corrupção.
“Ao se permitir a contratação direta e pessoalizada, acaba-se por eliminar um dos mecanismos criados pelo Estado brasileiro para prevenção contra atos de corrupção: o próprio procedimento licitatório. Dessa forma, a admissão de tais cotas parlamentares termina por significar uma válvula de escape para possíveis ímprobos, ou mesmo uma forma de os administradores despreparados desperdiçarem verbas públicas, o que vai de encontro aos compromissos internacionais do Brasil de combate à corrupção”, escreve o procurador.
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