“Numa democracia, até o direito de não querer saber de nadinha com nada pode e deve ser garantido”, dizem os autores. Para eles, brasileiro não se sente mais representado apenas pelo voto
André Sathler Guimarães e Malena Rehbein Rodrigues*
Um voto vale pouco, mas custa muito. Vale pouco porque é apenas um entre centenas de milhões de outros votos, que separados podem pouco mesmo. Custa muito por, juntos, serem instituintes de uma realidade de poder que perdurará por quatro anos. Portanto, composta a nova legislatura, é oportuno o convite a que você pense sobre o que pode esperar dos representantes eleitos para o Poder Legislativo. O mainstream da ciência política modeliza o comportamento parlamentar a partir de pressupostos da ciência econômica: o representante é maximizador de utilidade e estritamente racional em seu processo decisório. Ocorre que modelos são úteis no processo de didatização e compreensão da realidade, mas não encerram a verdade última das coisas. O recorte do Deputado oeconomicus dialoga com uma perspectiva que vislumbra o representante como um tipo de técnico e a técnica como pretensão de validade de seu agir. A política, contudo, aproxima-se mais da arte e envolve lapidação de dissensos no difícil processo de construção de consensos.
A imaginação de um corpo de parlamentares eficiente, preciso, correto, bem-informado, bem-preparado – adjetivos quase que subliminarmente associados à técnica em uma sociedade crescentemente tecnocratizada – dialoga com a perspectiva platônica de uma sociedade perfeita, regida por filósofos. Curiosamente, diversos filmes recentes, voltados para o público adolescente (exs.: Divergente, O doador de memórias), trabalham a visão de sociedades republicanicizadas a Platão. Felizmente, esses filmes apontam para o caráter distópico dessas soluções, nas quais a pessoa é plenamente livre para exercer exatamente o papel que se espera dela. No mundo idealizado da República, o Estado é total, porque completamente introjetado. Portanto, espere que seu parlamentar seja um político, não somente um bom técnico. Obviamente que não no sentido pejorativo que ser político assumiu atualmente.
Usualmente, alguns meses após as eleições, começam as publicações de matérias sobre deputados mais ativos, tomando como referência quantidade de proposições apresentadas. Essa visão também conversa com uma perspectiva tecnicista: se em uma fábrica de automóveis o indicador de produção é a quantidade de veículos, em uma fábrica de leis… Em alguns parlamentos, como o espanhol, o parlamentar, individualmente, não tem a prerrogativa de apresentar proposições. Busca-se, justamente, densificar o nível de partida das propostas trazidas ao Parlamento, dado o esforço que cada uma delas vai gerar. Para apresentar muitas proposições, o parlamentar pode recorrer aos seus assessores e, esses, ao famoso “recorta e cola”, o que é puro desperdício de tempo e dinheiro. Para alguns autores clássicos, como J. S. Mill, que tratou especificamente do governo representativo, a faculdade de apresentar proposições deveria permanecer com um corpo de especialistas e os parlamentares atuariam como juízes das diversas propostas. Assim, espere que seu parlamentar seja um bom avaliador de novas ideias, um bom participante em discussões, não um operador de máquinas fotocopiadoras.
Outro tema que ronda as pautas jornalísticas é a frequência parlamentar às sessões, associado à quantidade de sessões realizadas. A expectativa subjacente é de um representante atado ao seu gabinete em Brasília 44 horas por semana. Curiosamente, essa expectativa convive com o desejo de ter o parlamentar na sua cidade, participando de formaturas, casamentos, batizados, etc. Esse dilema, já clássico e muito estudado, gera fenômenos como o paradoxo de Fenno (estudioso do Congresso americano): as pessoas adoram os seus representantes, mas odeiam o Congresso. Muitos parlamentos no mundo institucionalizam um período do mês para que o parlamentar esteja em sua base eleitoral, atendendo às demandas diretas do processo representacional. A questão é que a atuação política, como já sinalizado por Weber, é uma vocação, mais do que uma profissão. Você pode esperar que seu parlamentar trabalhe 24 horas por dia, mas não exija que ele faça isso preso a uma cadeira.
Muitos eleitores associam seu voto à defesa de uma causa específica. É legítimo que o parlamentar trabalhe e defenda um tema com mais veemência ao longo de seu mandato. Essa é mais uma faceta do que se chama conexão eleitoral. Contudo, o Congresso não é uma arena de embaixadores de interesses parciais. Antes, é o local para formação da vontade nacional – algo que existe, apesar de completamente abstrata. A defesa de interesses parciais precisa, portanto, estar conciliada a uma visão mais abrangente do que seja o interesse coletivo de toda uma nação. Espere que seu parlamentar lhe represente, mas entenda que ele represente também todo um país.
E por falar em representação, anda meio na moda ouvir alguém dizer que não se sente representado. Nos protestos de junho de 2013 frases assim se tornaram slogans. De fato, no caso do Legislativo, eleito pelo sistema proporcional e com distritos (os nossos estados) muito grandes, o número de candidatos é por vezes tão grande que fica mesmo difícil saber em quem votar, e depois se manter informado sobre parlamentares às vezes tão distantes. Mas enquanto não há reforma política que contemple esses problemas, não se deve deixar de prestar atenção à outra mensagem embutida nos protestos, e que complementa o sentimento de não representação: os brasileiros não querem mais participar da vida política, só nas eleições.
E o que isso quer dizer? Que o brasileiro não se sente mais representado somente pelo seu voto. Ou seja, que ele não vê o ato de autorizar alguém a tomar decisões políticas em seu nome como mais importante do que todo o processo pelo qual essa autorização acontece, antes e depois do voto, para usar uma colocação da cientista política Nádia Urbinati. Isso tem o feliz nome de representação negociada. Para ser exercida, depende da pró-atividade de ambos os lados, parlamentares e cidadãos. Significa que você, depois de votar, pode e deve continuar negociando a sua representação, participando formalmente do processo decisório no Legislativo, indo aos debates das comissões de seu interesse, apresentando projetos à Comissão de Legislação participativa, dando opinião nos mais diversos canais de participação recentemente abertos no Congresso. Ou simplesmente se movimentando socialmente, por meio de redes sociais, movimentos tradicionais na sociedade, de forma não institucional. Como toda relação, é o processo que vai gerar o sentimento de vínculo de representação. Afinal que relação pode durar e ser confiável com um encontro rápido a cada quatro anos?
Depois disso, o valor do seu voto acaba tendo um custo bem mais alto para cada candidato que deseje obtê-lo (é a sua autorização valorizada). Convencer quem está atento ao processo político pode ser bem mais difícil do que quem abriu mão da política por não gostar dela, como se ouve comumente. Mas, é claro, numa democracia, até o direito de não querer saber de nadinha com nada pode e deve ser garantido. E, se essa for a sua posição, acredite: sempre haverá quem queira representar aqueles que não querem saber de nada.
André Sathler Guimarães é doutor em Filosofia, coordenador do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados. Malena Rehbein Rodrigues é doutora em Ciência Política, docente do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados
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