quarta-feira, 15 de julho de 2015

“Em defesa do elitismo”, por Roger Scruton




Anton von Werner, Kaiserproklamation in Versailles (detalhe), 1882.
Anton von Werner, Kaiserproklamation in Versailles (detalhe), 1882.
Há uma expressão bastante famosa, “a tirania da maioria”, que foi introduzida no discurso político por dois pensadores quase contemporâneos no século XIX. Alexis de Tocqueville, o famoso escritor francês que escreveu “A Democracia na América”, viajou por este país tentando entender como o povo pode sobreviver sem uma aristocracia. Ele ficou abismado ao descobrir que elas sobreviviam, ele mesmo sendo um membro da aristocracia. E, enquanto pensava que a vida humana poderia mudar para uma direção democrática, discerniu um perigo permanente descrito nestes termos: a tirania da maioria – ou seja, o perigo de que toda decisão pública fosse tomada pela maioria para a maioria e desconsiderasse tanto os direitos das minorias quanto a possibilidade de discordância. Ele descobriu que, na América, a tirania da maioria não havia surgido. E, então, perguntava-se: por quê?
John Stuart Mill, o famoso filósofo político inglês, fez um alerta semelhante. Sua preocupação era a de que se houvesse democracia real, o que estava começando a acontecer na Inglaterra e já existia na América, indivíduos, minorias e grupos legítimos perderiam sua proteção contra a opinião da maioria. E, como sabemos, maiorias possuem mais poder que minorias. Se aquelas tivessem o poder de impor sua visão, o que aconteceria às minorias? O que aconteceria com os discordantes?
Tanto Tocqueville quanto Mill conheciam que uma verdadeira ordem política só poderia existir se houvesse discussão sobre a pauta do dia. Só pode haver discussão se há legitimidade em discordar. Mas ninguém realmente gosta de discordância. Então, como torná-la possível? Como conseguir que a maioria aceite o fato de que há quem não faça parte de seu grupo?
E era sabido, ao menos na América, que era necessária uma constituição que, de alguma forma, estivesse acima do sentimento popular e lhe pusesse limites. Há muitas razões para isso, mas uma em particular é o que chamo de “fantasia liberal”: a fantasia de que as pessoas são basicamente boas, enquanto poder e privilégio são ruins. Assim, não deveríamos ter nenhuma dessas coisas cheias de poder como constituições ou estado de direito, pessoas em posições judiciárias, ou pessoas que estejam acima da maioria e digam a ela o que fazer. Isso porque as pessoas, sendo basicamente boas, sempre farão a coisa certa na medida em que forem livres para tanto.
Neste momento, a maior parte de vocês é jovem e ainda não têm uma experiência completa sobre a maldade das pessoas – ou de si próprios. Mas há muitas oportunidades para isso, e isso vai, por certo, mudar com o passar do tempo. Enquanto alguns poderes e propósitos são ruins, outros são necessários para tornar as pessoas boas. Incidentalmente, acho que isso faz parte do que é a educação: esperamos que o tempo de vocês, jovens, neste lugar sirva para seu melhoramento – não apenas tendo mais conhecimento, mas talvez mais habilidade de se relacionar com os outros, de deixar sua marca na sociedade, de cooperar, de ser o tipo de pessoa que não precisa socar o rosto de ninguém para ter o que quer.
Assim, no geral, as pessoas precisam ser geridas. E penso que toda filosofia política precisa, por fim, refletir a respeito do que existe na natureza humana que cria essa necessidade de gestão. Há certos aspectos da condição humana sobre os quais as pessoas evitam pensar. Todos vocês são relutantes em pensar sobre coisas a respeito de si próprios que não são agradáveis nem para vocês, nem para os outros. Mas há também características gerais da condição humana sobre as quais sentimos dificuldade de pensar.
A primeira é inveja e ressentimento. As pessoas se sentem ressentidas sobre os bens, o status, os talentos dos outros, e isso é normal. Nietzsche, o filósofo alemão do século XIX que vocês certamente já devem ter conhecido, achava que o ressentiment – ele usava a palavra francesa por razões que só ele sabia – era a posição normal das comunidades humanas. Ao fim e ao cabo, é o ressentimento que faz o mundo girar, e é por isso que o mundo é tão feio. E Nietzsche não fazia realmente parte do mundo. Ele era um tipo bem ranzinza. Ele advogava um modo muito mais solitário de pensar sobre as coisas do que a maioria de vocês acharia adequado. Deixando de lado sua autointitulada “filosofia positiva”, creio que a maioria das pessoas reconheceria que ele tem alguma razão. Claro, as pessoas se ressentem umas das outras, e uma das coisas que nos causa mais ressentimento é o fato de sabermos que os outros estão melhores do que nós. E esse ressentimento sempre estará ali – especialmente quando estamos em estreita competição por algo que queremos muito. Competimos por, digamos, um emprego ou um amor ou uma posição social ou status, e vemos outra pessoa conseguindo isso. E não conseguimos controlar esse sentimento.
Há, entretanto, outra parte das pessoas que precisa de gestão. Isso interessava muito mais a John Stuart Mill, e é o desejo por ortodoxia. Mill acreditava que a ortodoxia, ao invés da liberdade de opinião, era a situação normal das sociedades humanas. Ele acreditava que as ortodoxias prevaleciam e que nos refugiávamos nelas. Sabemos que, se repetirmos o que todo mundo está dizendo, mesmo que não acreditemos que seja plenamente verdadeiro, estaremos a salvo, não seremos atacados. E se destacar e dizer o que é geralmente reprovado, mesmo que seja evidente para todos, requer coragem.
Outro traço da condição humana – muito enfatizado pelo filósofo, crítico e antropólogo francês René Girard – é que temos uma intensa necessidade de culpar os outros, de perseguirmos o herege. Se a sociedade está numa posição difícil, se as pessoas discordam profundamente umas das outras, incapazes de concordar sobre algum assunto corrente, ou talvez estejam enfrentando alguma ameaça, ajuda de alguma forma apontar um culpado. Não interessa que ele seja realmente culpado: acusamo-lo e o perseguimos, e todos nos unimos contra ele e nos sentimos bem por isso. Todos passamos a achar que encontramos o problema e estamos nos livrando dele. Foi isso, evidentemente, que Hitler fez com os judeus na Alemanha no período entreguerras. Ele disse: “Não se preocupem. A razão de a nossa sociedade estar em caos total não é porque eu estou no comando, muito pelo contrário: é porque de todos esses judeus que estão se unindo contra nós, conspirando para solapar o comportamento puro da maioria ariana. Então, nós os perseguiremos e nos livraremos deles.” E creio que, se olharem para a história, vocês verão que culpar os outros é uma dos traços mais importantes da sociedade humana.
Todas essas três características apontam para o fato de que o perdão é difícil tanto para comunidades humanas quanto para indivíduos. É difícil perdoar as pessoas por estarem melhores que nós mesmos, perdoá-las por terem uma opinião própria, perdoá-las por serem os hereges. E penitência é algo raro. As pessoas não admitem com frequência suas culpas, nem põem em prática algum tipo de penitência ou arrependimento para suavizar ou consertar aqueles erros. E creio que todos vocês sabem disso a partir de suas próprias vidas. E, entretanto, nós também sabemos – em parte por causa da nossa herança judaico-cristã – que o perdão é absolutamente fundamental para o tipo de ordem social de que gozamos. As pessoas podem viver em paz umas com as outras nesta sociedade porque elas estão prontas a perdoar os erros dos outros ou confessar os seus próprios.
Agora, sob a luz de tudo isso, vocês podem ver porque é perigoso ser – ou querer ser – um membro da elite. E é razoavelmente normal na América que as pessoas peçam desculpas por o serem. Desculpar-se é algo excelente, mas pode ser feito exageradamente. Todos vocês estão habituados com o hábito americano de pedir desculpas quando alguém tromba com vocês na rua – vocês espontaneamente assumem a culpa por tudo que acontece de errado para ter uma espécie de relação pacífica preventiva. Desculpar-se, na América, é uma espécie de saída pacífica ao horror da sociedade humana. Toda vez que isso se impõe a vocês, vocês dizem “desculpe, desculpe” e seguem adiante. Bem, não digo que isso é algo ruim, mas certamente não resolve todos os problemas.
As consequências dessas características da condição humana são que, em primeiro lugar, existe um certo clamor por igualdade – e este é evidentemente o caso, especialmente sociedade americana. Em todas as esferas hoje há o desejo de equalizar. As pessoas não gostam de hierarquias e privilégios, e há uma disposição natural em dizer que eles são imerecidos. Quando alguém invoca algum tipo de posição hierárquica, esta questão é levantada: “Quem é ele? Quem ele pensa que é? E com que direito ele se acha superior a mim?” E, assim, organizações hierárquicas, como a Igreja Católica, são frequentemente atacadas como anacronismos. Dizem: “Isso caía bem na Idade Média, mas não precisamos de coisas assim hoje – na verdade, elas são inerentemente incompatíveis com o tipo de sociedade que se desenvolveu desde então.” E a Igreja Católica, como, estou certo, vocês sabem, sofre disso – e outras coisas, também – porque as pessoas não aceitam a ideia de que há uma autoridade concedida do alto, incorporada na pessoa e no ofício do Papa e distribuída por todo o episcopado e além, até o fiel comum. Em oposição a essa ideia temos as igrejas evangélicas, que querem fazer tudo de baixo para cima dizendo que o Espírito Santo nos visita a todos igualmente.
Novamente, riqueza e privilégio, cultura e intelecto, todos são alvos de ressentimento em nossa sociedade. Isso porque é muito difícil que características não compartilhadas por nós nos sejam aprazíveis. Sentir prazer com a boa sorte de alguém é algo raro. Isso envolve um trabalho de perdão: é necessário perdoar o outro por ser melhor do que você, por ter conseguido a garota que você queria, e assim por diante. E, como disse, o perdão é raro. Ainda assim, sentir prazer pelo sucesso do outro é uma das virtudes tradicionais do povo americano. E acho que essa é uma das coisas que faz dessa sociedade algo tão promissor. Na Europa, é extremamente raro que as pessoas sintam prazer pelo sucesso de alguém que não sejam elas próprias. E, mesmo assim, a primeira coisa que querem fazer com esse sucesso é escondê-lo, caso alguém possa saber sobre ele. Aqui, no entanto, quando se é bem-sucedido, a pessoa vai e diz: “Isso, eu consegui!” E as pessoas que não conseguiram irão, mesmo assim, dar-lhe um tapinha nas costas e dizer: “Ótimo, estou feliz por você.” Isso em parte acontece porque as pessoas nesta sociedade reconhecem que há oportunidades para elas também. Ver alguém conquistando algo reafirma que elas poderão, algum dia, conseguir o mesmo também.
Entretanto, por causa desse legado de ressentimento e da raridade do perdão, há um desejo de derrubar os grandes e fazer distinções inexistentes ou inúteis. Não em todas as esferas – e acho isso muitíssimo interessante. No esporte, por exemplo, o talento é ainda universalmente reconhecido e amplamente louvado. De alguma forma, sentimos que não somos julgados pelo sucesso desportivo dos outros. Eu jamais teria alguma chance no futebol americano, ou mesmo em qualquer outro esporte, então eu não me importo. Digamos que eu moldei a minha vida de modo a não competir naquele âmbito. Mas é um ponto muito interessante: por que as pessoas, no geral, não se importam de verdade com distinções no mundo do esporte? Uma sugestão é óbvia: não poderia haver um mundo do esporte se não houvesse pessoas que se destacassem – e como poderíamos praticar alguma coisa se não tivéssemos o objetivo de ganhar? Faz parte da própria essência do esporte. Mas as pessoas duvidam que seja essencial a outras coisas que são muito importantes para nós.
Há uma desvantagem nisso tudo. O sociólogo alemão Max Weber possui um famoso argumento de que há em toda comunidade humana um motivo para os devedores se juntarem para espoliar seus credores. E vemos isso acontecendo também no processo político: a maioria vota em espoliar os bem-sucedidos porque acreditam que a riqueza realmente não pertence àqueles que a conquistaram. Pelo contrário, ela é um bem social e deveria ser distribuída de maneira mais justa. E isso poderia ser feito através do Estado. Podemos taxar os ricos e distribuir o dinheiro entre nós.
E muitos filósofos políticos justificam isso – não tanto nos duros termos que acabei de usar ou nos que Weber usa. Weber apenas fala a verdade. A filosofia política é uma maravilhosa tapeçaria de mentiras entremeadas para esconder esse tipo de verdade. Mas John Rawls, em seu famoso livro sobre justiça, pensa essencialmente nos mesmos termos: a riqueza é um bem social e não é próprio até ser distribuído. Além disso, ela deve ser distribuída de acordo com um plano que leve em consideração as necessidades sociais de todas as pessoas, e que, portanto, deve ser posto em ação pelo Estado. Assim, em virtude do sentimento de que os bens são realmente socialmente possuídos em alguma medida, a maioria das pessoas vota não apenas para redistribuir os bens econômicos da sociedade, mas também, em alguma medida, para abolir a ameaça que a educação universal representa.
Há um movimento na direção de um currículo sem distinções – de forma que todos consigam um “A” e se formem com menções honrosas. E isso, é claro, tem o efeito de diminuir o valor de um título a ponto de que não vale mais a pena ter um. Isso representa uma ameaça ao tipo de educação que vocês tentam tão arduamente alcançar. Eu sei que vocês estão se esforçando, ou não teriam vindo aqui hoje. Vocês estão se esforçando não para obter um documento sem valor, mas receber algo que realmente mostre que vocês venceram, que seu trabalho valeu a pena.
Todavia, como dizíamos, a maioria não consegue reconhecer cultura genuína, que é o domínio de uma minoria, da cultura falsa, que todos nós podemos adquirir. E isso é algo que preocupa muito quem advoga pela música clássica, pois ele sabe que a tradição clássica da música contém em si conquistas, conhecimento e um mundo de sentimento preciosos que requerem um certo esforço para serem descobertos. Muitas pessoas dizem: “Não, não vamos nos preocupar com isso. Fiquemos apenas com a Lady Gaga.” Mas, sem dizer nada a respeito de Lady Gaga, ainda vale a pena fazer esse esforço. Até você tê-lo feito, todavia, você não sabe que vale a pena. Há muitas coisas assim na vida humana: você conhece o valor de algo apenas quando tem contato com ele. Mas para ter contato com ele, você precisa ser convencido do seu valor. É uma espécie de paradoxo, não é? Lembra o famoso paradoxo de Groucho Marx sobre ser membro de um clube: “Por que eu faria parte de um clube que me aceitaria como membro?”
Como um resultado dessas questões, as pessoas começam a suspeitar da própria ideia de julgamento, concluindo que julgar é algo errado. E quem julga está se tornando uma espécie de pária em nossa sociedade. Há algumas consequências desse fato. Uma é a tentativa de espoliar e redistribuir os bens dos bem-sucedidos. O problema com isso, claro, é que penaliza o sucesso a ponto de não haver mais bens. E foi isso que vimos na Europa comunista: o confisco de todos os lucros de qualquer empresa levou ao desaparecimento desses lucros, de modo que não havia nada a redistribuir e a sociedade se tornou cada vez mais pobre. Mas, mesmo assim, a maioria clama por mais, o que, como resultado, força o governo a tomar emprestado do futuro. Temos que admitir que estamos acostumados não apenas com as oportunidades, mas com os direitos que nosso governo nos prometeu, ainda que haja cada vez menos capacidade econômica para renovar esses direitos. E também testemunhamos isso em nossas sociedades através do mundo ocidental – esse empréstimo do futuro sobre o qual muitas pessoas estão extremamente alarmadas hoje em dia. O que acontece quando os credores dizem “é hora de nos pagar”? Nós vimos o que aconteceu na Grécia e em Portugal recentemente. A Grécia, é claro, foi resgatada pela União Europeia, mas apenas para transferir o problema para o resto da UE. O problema não foi, de fato, resolvido. E, assim, vemos um endividamento crescente e uma preocupante crise fiscal, e muita gente diz que o dia do acerto de contas tem que vir. Mas não sabemos como ele será.
Outra consequência é a destruição da alta cultura – o tipo de cultura que as universidades deveriam estar comprometidas a fornecer. Poucas pessoas possuem um entendimento crítico de seus próprios motivos. Os apetites triunfam sobre a reflexão. E as pessoas estão sempre à procura de quem culpar. E isso, por sua vez, conduz à hostilidade contra qualquer forma de distinção e a uma espécie de expansão da cultura da mediocridade. “Está certo eu ser o que sou, e não me importo se você acha que é melhor do que eu. Sou feliz do jeito que sou.”
Mas há um lado positivo nisso tudo: nós podemos superar isso. Todos sabemos que, se você manter sua cabeça baixa, as pessoas os deixarão em paz. E isso já é, pelo menos, uma solução temporária para o problema. Pela minha vida afora, eu, infelizmente, não mantive minha cabeça baixa, e esta é uma parte bastante machucada do meu corpo. Mas ela ainda está no seu lugar, e eu continuo perseverando. E agora, entrando na casa dos setenta anos, não importa realmente o que acontece comigo.
Mais importante, nós aceitamos a necessidade de proteger minorias, mesmo minorias educadas. E isso acontece porque admitimos em nossos corações, especialmente se temos filhos, que queremos oportunidades não apenas para nós mesmos, mas para eles. E, portanto, precisamos de uma cultura que distinga o sucesso do fracasso. Podemos não saber em que área nossos filhos competirão, mas, mesmo assim, sabemos que há diferença entre sucesso e fracasso, e certamente não queremos que eles fracassem. Então, as pessoas não estão totalmente comprometidas com a mediocridade. Creio que todos os pais tem um desejo por parâmetros na educação. E todos os que estão fazendo sacrifícios para alcançar uma visão de mundo educada aceitam que deve haver parâmetros. Por que, afinal, eles estariam se sacrificando?
Além disso, pais são competitivos. A competição reside na natureza do processo reprodutivo. A reprodução ainda não é algo do passado, o que, tenho certeza, vocês sabem por estarem nesse recinto. Eu sei que isso não vira manchete hoje e que os números estão em queda, mas, ainda assim, as pessoas se importam com a reprodução, ainda que seja apenas como um subproduto involuntário, como algo que acontece. E aí lá estão esses filhos, e nós queremos que eles tenham sucesso. A competição reside na natureza mesma desse processo. Todos aqui que tem filhos sabem disso. Você está no comando da vida dessa coisinha, você irá protegê-la, você irá garantir que ela esteja bem. E isso é uma atitude essencialmente competitiva porque o mundo é cruel. Verdadeiros igualitários, pessoas que creem que a igualdade é tudo, tendem a não ter filhos – ou, ao contrário, como nossos políticos, garantem secretamente vantagens para seus filhos enquanto impõem a mediocridade a todos os outros.
Assim sendo, oferecerei umas poucas defesas contra a mediocridade. Como disse, minorias tem direitos, e um deles é o direito de associação. O direito de associação serve à proteção de seus bens. Nós temos o direito de montar nossas próprias escolas e faculdades. Em uma cultura majoritária, essas duas coisas estão ameaçadas – em terras britânicas, elas estão sob ameaça. Sob um governo trabalhista, talvez não seja possível que escolas privadas existam mais. Mas, enquanto acharmos que há direito de associação, as pessoas irão se unir e tentar resgatar a si mesmas. E talvez seja assim que as coisas devem ser.
A lição do século XX, no entanto, é a de que tudo o que é belo foi preparado como um sacrifício. Se você olhar para o que aconteceu à Europa no século XX – se você olhar para a cultura verdadeiramente mais bela que já existiu –, você verá que tudo de belo nela foi sacrificado. Não apenas as pessoas, mas as cidades, as instituições, os belos sistemas legais que herdamos, tudo foi sacrificado – exceto na Inglaterra, e mesmo lá foram fatalmente feridos. E creio ser isto algo que todos os seres humanos devem, no fim, reconhecer: que tudo de belo é preparado como um sacrifício.
Mas nós devemos seguir adiante, e, em certa medida, nós podemos. Deveríamos lavrar constituições que contém algo da velha ideia de herança – constituições que são obstáculos às maiorias de modo que não tiranizem as minorias que querem melhorar a si próprias. Então, precisaríamos de um discurso político que ocultasse esse fato da maioria. E é aqui que as coisas ficam difíceis. Nós temos que dizer, no fim, umas poucas mentiras. Temos que dizer: “Claro, esta sociedade é pautada pela igualdade.” E os americanos sempre disseram isso, ainda que tivessem uma constituição que foi cuidadosamente feita para impedir que isso fosse verdade. A constituição americana foi feita para proteger as minorias e a capacidade das pessoas em avançar e obedecer a parâmetros mais altos do que a maioria seria capaz de aguentar.
Essa é a tarefa mais árdua, mas creio que os jovens conseguem levá-la a cabo. Eles instintivamente querem encarar suas atividades como conquistas. Enquanto isso, vocês devem aprender a praticar a arte do ocultamento. Há uma bela palavra em árabe para isso: taqiyya. Ela foi introduzida no pensamento dos xiitas iranianos na Idade Média, quando viviam sob governos otomanos ou sunitas que proibiam sua forma particular de religião. E a palavra taqiyya vem, na verdade, da palavra para santidade. Diziam eles: “Você deve praticar estas coisas: toda vez que for confrontado por alguém, aprenda a dizer que você acredita exatamente no que ele acredita, que vive sua vida exatamente como ele vive. E em seu interior, sofrendo enormemente, mas não se revelando, estará a alma que reconhece a verdade.” Evidentemente, é uma forma exagerada de descrever a condição de pessoas como eu, mas ainda é verdade que, de vez em quando, devemos fazer um esforço para nos ocultarmos. Neste momento, não estou me esforçando para ocultar o que penso, e, por isso, estou numa posição perigosa. Eu posso me tornar como aquela vítima sacrificial, o bode expiatório.
Mas esse é o problema que nos aflige. O conselho que deve ser dado não deve ser dado abertamente. E você deve ocultar sua distinção em muitas circunstâncias da vida moderna. Você não deve necessariamente mostrar que é menos ignorante que seu próximo. Não confesse sua cultura, nem faça qualquer esforço para criticar a falta dela. Condene-se a si mesmo, alegremente, como um idiota igual a ele. Um de meus velhos alunos de Princeton veio à minha casa outro dia. Ele está trabalhando em uma prestigiosa instituição financeira em Londres, e eu disse a ele: “Bem, é ótimo que você conseguiu. É incrível. Vale todo o esforço que você colocou em aprender línguas clássicas e as obras de Goethe e toda aquela filosofia que lhe ensinei.” E ele disse: “Sim, mas muito mais útil foi aprender a falar sobre futebol, porque é a única coisa sobre a qual falam no escritório. Uma vez, deixei escapar um comentário sobre Goethe e ficou bastante claro que minha carreira estava em jogo.” Eu respondi: “Sim, é claro, mas eu não lhe alertei sobre isso?” E ele disse: “Sim, desculpe, mas eu havia esquecido.”
No fim das contas, você deve humildemente admitir o direito do outro, como membro da maioria, a determinar o futuro da sociedade em que você está incluído. Não deixe transparecer que você tem o desejo secreto de perpetuar outro tipo de cultura. E que tipo de cultura seria? Sobre isso serão minhas observações finais.
Eu acredito que queremos perpetuar, especialmente nas universidades, uma cultura que é baseada no conhecimento e na distinção entre verdadeiro conhecimento e mera opinião. Obviamente, é muito difícil fazer uma distinção pessoal de nossas opiniões entre aquelas que são verdadeiros conhecimentos e as que não são, pois todas são, do nosso ponto de vista, a mesma coisa. Mas, no contexto de um debate aberto em uma universidade, vocês conseguirão perceber que suas opiniões possuem diferentes pesos. Algumas delas são frágeis e não significam nada. Elas não entram na balança da discussão de maneira efetiva. Mas outras, quando vocês as expressa corretamente, fazem com que os outros acreditem nelas e as aceitem, pois estão alicerçadas em algo mais.
E esse conhecimento precisa fazer juízos e estabelecer parâmetros, precisa distinguir o verdadeiro do falso, o bom do ruim, o virtuoso do vicioso, e assim por diante.
Ele deve respeitar, penso eu, instituições, heranças e tradições duradouras. Essa é uma das coisas mais difíceis para as pessoas da minha geração passar para as pessoas da sua geração. Obviamente, as instituições que herdei mudaram horrivelmente nesses cinquenta anos em que tive consciência delas. Mas eu acredito ainda, não tanto no valor de todas elas, claro – algumas delas mudaram e outras desapareceram acertadamente –, mas naquela herança nuclear que é responsável por eu estar aqui hoje falando o que penso. E eu quero passar isso adiante. E eu acho que isso só pode ser passado adiante se respeitarmos a ideia de que é algo que já existe.
Está ali porque nos foi legada por pessoas que fizeram sacrifícios para que isso pudesse acontecer. E nós, penso eu, devemos aprender a honrar esses sacrifícios e fazer nossa parte para perpetuar essas instituições e tradições. Isso não significa que temos que aceitar tudo sobre elas. Nós temos, pelo contrário, que oferecer nossa própria contribuição viva a elas. E elas precisam ser consertadas de diversas formas.
Mas, acima de tudo, nós temos que manter viva a memória coletiva do que nós somos enquanto povo. Isso não se reduz meramente ao que a maioria das pessoas coincidentemente quer agora. Na América, especialmente, a natureza demográfica do país muda rapidamente de geração para geração, e, ainda assim, há uma ideia de que nós devemos ficar juntos e que compartilhamos algo que herdamos. Queremos mudar aspectos disso, mas, sem esse algo, não seríamos capazes de viver pacificamente no mesmo lugar. E penso que isso envolve um trabalho ativo de memória no qual confrontamos algumas das coisas ruins que aconteceram e, todavia, resgatamos delas as coisas boas que queremos perpetuar. Acho que essa memória coletiva deve, por sua vez, estar aberta à ideia de conquista e às aspirações e aos ideais que as pessoas ainda podem ter nas atuais circunstâncias.
Roger Scruton é filósofo e um dos maiores nomes do pensamento conservador do último século. Publicou mais de trinta obras que tratam de estética, política e filosofia – dentre elas, “Pensadores da Nova Esquerda” e “Beleza”, ambos lançados em português pela É Realizações, e “How To Be a Conservative”, que está sendo traduzido por Bruno Garschagen. O presente artigo é a transcrição da conferência inaugural do Future Symphony Institute, feita em setembro de 2014, na Universidade de Baltimore, nos Estados Unidos, e sua tradução foi gentilmente autorizada pelo autor através do referido instituto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário