Após a repercussão das manifestações populares do último dia 15, a Presidente da República, Dilma Rousseff, lançou ontem pacote de medidas anticorrupção que não contempla as correções necessárias à Lei Anticorrupção, segundo a especialista no assunto, Lucieni Pereira.
Em entrevista concedida ao Contas Abertas, a presidente do Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) acredita que a lei foi aprovada às pressas como uma espécie de resposta às manifestações de junho de 2013, mas a legislação até agora não se demonstrou efetiva no combate à corrupção. Para ela, se não houver a alteração necessária, o texto atual pode facilitar e até mesmo incrementar a corrupção.
Há um mês, o Contas Abertas, em conjunto com as Associações que representam auditores de controle externo (ANTC e AUD-TCU), representou ao procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União, Júlio Marcelo de Oliveira, que pediu cautelarmente a suspensão da celebração desses acordos pela Controladoria-Geral da União com empresas investigadas pela Lava-Jato. O caso teve ampla repercussão na imprensa, chegando ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.
No último dia 10, o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) apresentou Projeto de Lei para alterar a Lei Anticorrupção (PLS nº 105, de 2015). Pela proposta, o Ministério Público deverá homologar os pedidos de acordo de leniência.
O Partido Social Liberal (PSL) também ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no STF para questionar artigos da lei que estabelecem responsabilização objetiva da pessoa jurídica envolvida em fraude de licitação. Para o autor da ação, a Teoria do Risco Integral viola garantias constitucionais.
O presidente da Confederação Nacional dos Servidores Públicos (CNSP), entidade do terceiro grau que congrega associações e federações de associações que representam mais de 700 mil servidores públicos em todo Brasil, também pediu apoio às ações das entidades e do procurador de contas que tentam barrar a celebração de acordos de leniência com empresas investigadas pela Lava Jato antes da conclusão das investigações do MPF.
Confira entrevista completa:
Contas Abertas (CA) – Qual a avaliação da ANTC sobre o Projeto apresentado pelo Senador Ferraço?
Lucieni Pereira - A proposta foi muito bem recebida pela Diretoria da ANTC; a iniciativa é, de fato, uma medida efetiva anticorrupção e merece o apoio dos Congressistas, das instituições de controle e da sociedade civil.
CA - Por que o Projeto Ferraço merece o apoio do cidadão?
Lucieni Pereira - Primeiro, o Projeto cria as condições para reabrir a discussão com as diversas instituições de controle, sociedade civil e entidades representativas dos profissionais que têm a missão de combater a corrupção, tais como auditores de controle externo, policiais, procuradores e magistrados. Segundo, a proposta explicita a única interpretação que se harmoniza com a Constituição de 1988 no que se refere à celebração de acordos de leniência após o início de investigações pelo Ministério Público ou Polícia, em especial nos casos em que houver informações protegidas pelo sigilo.
CA - Qual a importância do Projeto de Lei do Senador?
Lucieni Pereira - A importância é indiscutível, porque elimina a polêmica criada pelos órgãos do Poder Executivo, que insistem em se antecipar para celebrar acordos de leniência com a finalidade de “salvar” empresas que fraudaram licitações, como se esse fosse o principal objetivo da Lei Anticorrupção. Não é. Agir assim é praticar verdadeiro estelionato contra a crença de segmentos expressivos da sociedade civil que participaram, em 2012, da 1ª Conferência Nacional de Transparência e Controle Social (CONSOCIAL) promovida pelo Governo Federal e aprovaram moções de apoio à edição de uma lei anticorrupção que responsabilizasse pessoas jurídicas que fraudassem licitações.
CA - Quais os efeitos dessa proposta para a Operação Lava-Jato?
Lucieni Pereira - A proposta garante que as investigações ocorram com tranquilidade e segurança jurídica, sem interferências descabidas do Poder Executivo. Estamos diante do maior caso de corrupção da história da humanidade, de proporções globais ainda desconhecidas, mas pelo que se sabe é suficiente para assustar e gerar indignação nos cidadãos, tão carentes de acesso a serviços dignos nas áreas de saúde, educação, saneamento básico, transporte, segurança pública, etc.
CA - Como os cidadãos são afetados com o excesso de leniência?
Lucieni Pereira - O elevado índice de corrupção e a cultura de impunidade que ainda reina no Brasil não só bloqueiam os direitos humanos básicos para os mais pobres como também criam problemas de governança e instabilidade. Estudos mostram que economias cujos governos toleram a corrupção criam a cultura da impunidade e comprometem o futuro dos cidadãos.
CA - A ação ajuizada Supremo pode atrapalhar a Operação Lava-Jato?
Lucieni Pereira - Não acredito. O autor questiona apenas a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por ato de corrupção e fraude em licitações e contratos. Há argumentos favoráveis e contra essa previsão. Não vejo risco para a Operação Lava-Jato, até porque os ilícitos constatados nas investigações podem ser combatidos pela Lei de Improbidade Administrativa na esfera cível, como já fez o MPF com o ajuizamento de cinco ações do tipo na Justiça Federal.
CA - Há outras inconstitucionalidades na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Sim. Identificamos pelo menos três pontos passíveis de questionamento que, se mantidos, podem gerar insegurança para as pessoas jurídicas que contratam com a Administração Pública nas três esferas de governo.
CA - Quais seriam as principais inconstitucionalidades da Lei?
Lucieni Pereira - A falta de proporcionalidade e razoabilidade na fixação de restrições distribuídas entre as esferas de responsabilização é um dos pontos que precisa de reflexão. Outro que destacaria é o artigo 13 da Lei, que prevê a fixação do valor do dano com inscrição na dívida ativa, sem considerar que as decisões do Tribunal de Contas da União têm eficácia de título executivo por determinação constitucional e podem ser executadas diretamente. O terceiro ponto é a interferência na competência do Poder Judiciário, que fica à mercê da ação ou omissão de milhares de gestores quanto aos acordos de leniência.
CA - Qual o efeito da falta de proporcionalidade entre as penalidades e medidas restritivas previstas na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - A falta de proporcionalidade entre sanções administrativas e cíveis na esfera judicial destoca da temperança que se verifica na legislação vigente sobre penalidades semelhantes. É preciso considerar que a intervenção na esfera administrativa encontra limites nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, cuja ação de controle deve ser necessariamente exercida com adoção de medidas proporcionais à destinação específica da competência do órgão ou entidade.
Há um limite imposto, especialmente ao legislador, que deve obedecer a certos critérios na elaboração das leis, para que sejam harmônicas com a estrutura constitucional do país, sendo o princípio da proporcionalidade um dos mais importantes. Quando se trata de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição, mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
É discutível, por exemplo, a previsão de multa administrativa que pode variar de 0,1% a 20% do faturamento bruto das empresas aplicada por órgãos do sistema de controle interno que não detêm poder de polícia para atingir empresas privadas que não aplicam dinheiro público. Pela Lei Anticorrupção, o juiz na esfera cível é competente para aplicar multa no mesmo patamar, desde que não haja acordo de leniência celebrado pelo gestor com a empresa fraudarora. Ou seja, a competência do juiz fica à mercê da ação ou omissão de autoridades de milhares de órgãos e entidades públicos.
Pior ainda é possibilitar a aplicação de multa, que pode atingir um quinto do faturamento das empresas, por qualquer dirigente máximo dos órgãos e entidades de Estados, Distrito Federal e mais de 5,5 mil Municípios, cujos cargos não raras vezes são ocupados por não-concursados. Isso, sem dúvida alguma, lança as empresas num cenário de práticas “selvagens”, suscetíveis a todo tipo de “achacamento” pela própria autoridade que pode estar envolvida em atos de corrupção e fraude.
CA - E a competência do TCU, como pode ser afetada?
Lucieni Pereira - A tentativa de deslocar para os órgãos e entidades administrativos o poder de fixar o valor integral do dano com a posterior inscrição do débito em dívida ativa da Fazenda Pública afronta o artigo 71 da Constituição que fixa a competência do TCU, órgão de controle externo independente competente para rever os atos de gestão, seja quanto à legalidade, seja quanto à legitimidade.
CA - Quanto ao Judiciário, como a competência dos magistrados pode ser afetada pela Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - A isenção prevista no artigo 16, § 2º da Lei Anticorrupção é um dos aspectos mais controversos, pois fere de morte o princípio da independência e separação dos Poderes. A celebração do acordo de leniência pelos gestores de milhares de órgãos e entidades de todos os Poderes da União, Estados, Distrito Federal e mais de 5,5 mil Municípios, por exemplo, retira a competência do juiz de aplicar a multa de 0,1% a 20% do faturamento das empresas e de proibir o licitante fraudador de receber incentivos fiscais e de bancos públicos. O BNDES, por exemplo, realiza empréstimos a taxas de juros subsidiados pelo Tesouro Nacional, que de 2008 a 2014 injetou cerca de R$ 500 bilhões no banco para ampliar os financiamentos.
CA - Como corrigir esses problemas na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Tanto a ADI quanto o Projeto do Senador Ferraço têm condições de corrigir essas falhas legislativas que podem fazer da Lei Anticorrupção uma via reflexa de estímulo à corrupção. O Congresso Nacional e o STF certamente analisarão esses aspectos e promoverão a devida correção para que o Brasil tenha condições de combater, de fato, a corrupção e garantir melhores serviços públicos a seus cidadãos.
CA - Há experiências bem-sucedidas de responsabilização de pessoas jurídicas no Brasil?
Lucieni Pereira - Sim. A Lei nº 9.605, de 1998, é o melhor exemplo de regulamentação que observa as regras e princípios constitucionais, prevendo sanções administrativas e penais para empresas que praticam atividades lesivas ao meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar o dano.
Analisando a questão de uma forma mais abrangente, a Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, também possibilita que a decisão do juiz na esfera cível alcance a pessoa jurídica, ainda que de forma indireta, quando o sócio majoritário for responsabilizado. Pela Lei, a empresa fica impedida de contratar com o Poder Público e receber benefícios fiscais ou creditícios.
O Relatório Final elaborado pela Comissão de Reforma do Código Penal constituída pelo Senado Federal também propõe a responsabilização criminal da pessoa jurídica por atos praticados contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
A Comissão foi presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, tendo como integrantes a Ministra Maria Thereza Moura, também do STJ, os advogados Antonio Nabor Areias Bulhões, Técio Lins e Silva entre outros, o Desembargador José Muiños Piñeiro Filho do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e diversos outros integrantes.
CA - Existe polêmica quanto à constitucionalidade dessas Leis?
Lucieni Pereira - Pode-se dizer que não. Para o STF, por exemplo, é “admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa”, conforme decidido recentemente no Recurso Extraordinário nº 548.181.
CA - Quais as principais diferenças entre a Lei Anticorrupção e a Lei de Crimes Ambientais na responsabilização de pessoas jurídicas?
Lucieni Pereira - A Lei Anticorrupção, embora assim batizada, prevê multa e penas restritivas para empresa na esfera cível, enquanto a Lei de Crimes Ambientais responsabiliza a pessoa jurídica com multa e penas restritivas na esfera criminal. As sanções são muito parecidas, em muitos casos idênticas, apenas o processamento se dá em esferas diferentes.
O problema está na responsabilização administrativa e sua interferência descabida nas decisões dos magistrados. Na Lei de Crimes Ambientais, multas e penas restritivas na esfera administrativa são mais brandas, como devem ser, e aplicadas por agentes concursados de instituições de fiscalização que exercem poder de polícia em decorrência da regulação e fiscalização do licenciamento ambiental, sem qualquer interferência nas sanções que serão aplicadas pelo magistrado na esfera criminal.
Já na Lei Anticorrupção, a aplicação de multa administrativa fica a cargo de autoridades de milhares de órgãos e entidades públicos que não detêm poder de polícia em razão de suas competências precípuas. Para agravar a situação, a celebração de acordos de leniência administrativos afasta a competência do juiz de aplicar multa e proibir a empresa de receber benefícios fiscais e creditícios no processo instaurado na esfera cível.
CA - Quais os principais vícios de competência previstos na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Há dispositivos na Lei Anticorrupção que afrontam regras e princípios básicos da Constituição de 1988, com violação inaceitável de competência dos órgãos de controle autônomos pelo Poder Executivo. Na Lei de Crimes Ambientais, tanto a ‘transação penal’, que substitui a ação penal por multa e reparação do dano, quanto a suspensão do processo vinculada a cumprimento de condições fixadas na própria Lei são de competência do Ministério Público, que submete as propostas à homologação ou não do Poder Judiciário, que dará a palavra final.
A falta de razoabilidade na Lei Anticorrupção está presente, por exemplo, na tentativa de resolver, no âmbito do próprio Poder Executivo, atos gravíssimos de corrupção e fraude à licitação praticados por milhares de órgãos e entidades dos entes das três esferas de governo, de forma que pode prejudicar a condução das ações do Ministério Público, Tribunal de Contas e Poder Judiciário. Isso é inaceitável em um Estado de Direito.
CA - Quais as medidas necessárias para ‘salvar’ a Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - É preciso abrir a discussão no Congresso Nacional para que as instituições de controle incumbidas da missão de prevenção e combate à corrupção, em conjunto com as entidades de classe e sociedade civil, discutam alterações capazes de alinhar a Lei Anticorrupção aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que tem como pressuposto a independência e separação dos Poderes, o direito à exploração de atividade econômica pelas empresas em ambiente seguro e a proteção do patrimônio público de forma que privilegie o interesse dos cidadãos. Sem um debate franco acerca dos problemas identificados na Lei em questão, dificilmente haverá combate efetivo à corrupção no Brasil.
Em entrevista concedida ao Contas Abertas, a presidente do Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) acredita que a lei foi aprovada às pressas como uma espécie de resposta às manifestações de junho de 2013, mas a legislação até agora não se demonstrou efetiva no combate à corrupção. Para ela, se não houver a alteração necessária, o texto atual pode facilitar e até mesmo incrementar a corrupção.
Há um mês, o Contas Abertas, em conjunto com as Associações que representam auditores de controle externo (ANTC e AUD-TCU), representou ao procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União, Júlio Marcelo de Oliveira, que pediu cautelarmente a suspensão da celebração desses acordos pela Controladoria-Geral da União com empresas investigadas pela Lava-Jato. O caso teve ampla repercussão na imprensa, chegando ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal.
No último dia 10, o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) apresentou Projeto de Lei para alterar a Lei Anticorrupção (PLS nº 105, de 2015). Pela proposta, o Ministério Público deverá homologar os pedidos de acordo de leniência.
O Partido Social Liberal (PSL) também ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no STF para questionar artigos da lei que estabelecem responsabilização objetiva da pessoa jurídica envolvida em fraude de licitação. Para o autor da ação, a Teoria do Risco Integral viola garantias constitucionais.
O presidente da Confederação Nacional dos Servidores Públicos (CNSP), entidade do terceiro grau que congrega associações e federações de associações que representam mais de 700 mil servidores públicos em todo Brasil, também pediu apoio às ações das entidades e do procurador de contas que tentam barrar a celebração de acordos de leniência com empresas investigadas pela Lava Jato antes da conclusão das investigações do MPF.
Confira entrevista completa:
Contas Abertas (CA) – Qual a avaliação da ANTC sobre o Projeto apresentado pelo Senador Ferraço?
Lucieni Pereira - A proposta foi muito bem recebida pela Diretoria da ANTC; a iniciativa é, de fato, uma medida efetiva anticorrupção e merece o apoio dos Congressistas, das instituições de controle e da sociedade civil.
CA - Por que o Projeto Ferraço merece o apoio do cidadão?
Lucieni Pereira - Primeiro, o Projeto cria as condições para reabrir a discussão com as diversas instituições de controle, sociedade civil e entidades representativas dos profissionais que têm a missão de combater a corrupção, tais como auditores de controle externo, policiais, procuradores e magistrados. Segundo, a proposta explicita a única interpretação que se harmoniza com a Constituição de 1988 no que se refere à celebração de acordos de leniência após o início de investigações pelo Ministério Público ou Polícia, em especial nos casos em que houver informações protegidas pelo sigilo.
CA - Qual a importância do Projeto de Lei do Senador?
Lucieni Pereira - A importância é indiscutível, porque elimina a polêmica criada pelos órgãos do Poder Executivo, que insistem em se antecipar para celebrar acordos de leniência com a finalidade de “salvar” empresas que fraudaram licitações, como se esse fosse o principal objetivo da Lei Anticorrupção. Não é. Agir assim é praticar verdadeiro estelionato contra a crença de segmentos expressivos da sociedade civil que participaram, em 2012, da 1ª Conferência Nacional de Transparência e Controle Social (CONSOCIAL) promovida pelo Governo Federal e aprovaram moções de apoio à edição de uma lei anticorrupção que responsabilizasse pessoas jurídicas que fraudassem licitações.
CA - Quais os efeitos dessa proposta para a Operação Lava-Jato?
Lucieni Pereira - A proposta garante que as investigações ocorram com tranquilidade e segurança jurídica, sem interferências descabidas do Poder Executivo. Estamos diante do maior caso de corrupção da história da humanidade, de proporções globais ainda desconhecidas, mas pelo que se sabe é suficiente para assustar e gerar indignação nos cidadãos, tão carentes de acesso a serviços dignos nas áreas de saúde, educação, saneamento básico, transporte, segurança pública, etc.
CA - Como os cidadãos são afetados com o excesso de leniência?
Lucieni Pereira - O elevado índice de corrupção e a cultura de impunidade que ainda reina no Brasil não só bloqueiam os direitos humanos básicos para os mais pobres como também criam problemas de governança e instabilidade. Estudos mostram que economias cujos governos toleram a corrupção criam a cultura da impunidade e comprometem o futuro dos cidadãos.
CA - A ação ajuizada Supremo pode atrapalhar a Operação Lava-Jato?
Lucieni Pereira - Não acredito. O autor questiona apenas a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por ato de corrupção e fraude em licitações e contratos. Há argumentos favoráveis e contra essa previsão. Não vejo risco para a Operação Lava-Jato, até porque os ilícitos constatados nas investigações podem ser combatidos pela Lei de Improbidade Administrativa na esfera cível, como já fez o MPF com o ajuizamento de cinco ações do tipo na Justiça Federal.
CA - Há outras inconstitucionalidades na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Sim. Identificamos pelo menos três pontos passíveis de questionamento que, se mantidos, podem gerar insegurança para as pessoas jurídicas que contratam com a Administração Pública nas três esferas de governo.
CA - Quais seriam as principais inconstitucionalidades da Lei?
Lucieni Pereira - A falta de proporcionalidade e razoabilidade na fixação de restrições distribuídas entre as esferas de responsabilização é um dos pontos que precisa de reflexão. Outro que destacaria é o artigo 13 da Lei, que prevê a fixação do valor do dano com inscrição na dívida ativa, sem considerar que as decisões do Tribunal de Contas da União têm eficácia de título executivo por determinação constitucional e podem ser executadas diretamente. O terceiro ponto é a interferência na competência do Poder Judiciário, que fica à mercê da ação ou omissão de milhares de gestores quanto aos acordos de leniência.
CA - Qual o efeito da falta de proporcionalidade entre as penalidades e medidas restritivas previstas na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - A falta de proporcionalidade entre sanções administrativas e cíveis na esfera judicial destoca da temperança que se verifica na legislação vigente sobre penalidades semelhantes. É preciso considerar que a intervenção na esfera administrativa encontra limites nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, cuja ação de controle deve ser necessariamente exercida com adoção de medidas proporcionais à destinação específica da competência do órgão ou entidade.
Há um limite imposto, especialmente ao legislador, que deve obedecer a certos critérios na elaboração das leis, para que sejam harmônicas com a estrutura constitucional do país, sendo o princípio da proporcionalidade um dos mais importantes. Quando se trata de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição, mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
É discutível, por exemplo, a previsão de multa administrativa que pode variar de 0,1% a 20% do faturamento bruto das empresas aplicada por órgãos do sistema de controle interno que não detêm poder de polícia para atingir empresas privadas que não aplicam dinheiro público. Pela Lei Anticorrupção, o juiz na esfera cível é competente para aplicar multa no mesmo patamar, desde que não haja acordo de leniência celebrado pelo gestor com a empresa fraudarora. Ou seja, a competência do juiz fica à mercê da ação ou omissão de autoridades de milhares de órgãos e entidades públicos.
Pior ainda é possibilitar a aplicação de multa, que pode atingir um quinto do faturamento das empresas, por qualquer dirigente máximo dos órgãos e entidades de Estados, Distrito Federal e mais de 5,5 mil Municípios, cujos cargos não raras vezes são ocupados por não-concursados. Isso, sem dúvida alguma, lança as empresas num cenário de práticas “selvagens”, suscetíveis a todo tipo de “achacamento” pela própria autoridade que pode estar envolvida em atos de corrupção e fraude.
CA - E a competência do TCU, como pode ser afetada?
Lucieni Pereira - A tentativa de deslocar para os órgãos e entidades administrativos o poder de fixar o valor integral do dano com a posterior inscrição do débito em dívida ativa da Fazenda Pública afronta o artigo 71 da Constituição que fixa a competência do TCU, órgão de controle externo independente competente para rever os atos de gestão, seja quanto à legalidade, seja quanto à legitimidade.
CA - Quanto ao Judiciário, como a competência dos magistrados pode ser afetada pela Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - A isenção prevista no artigo 16, § 2º da Lei Anticorrupção é um dos aspectos mais controversos, pois fere de morte o princípio da independência e separação dos Poderes. A celebração do acordo de leniência pelos gestores de milhares de órgãos e entidades de todos os Poderes da União, Estados, Distrito Federal e mais de 5,5 mil Municípios, por exemplo, retira a competência do juiz de aplicar a multa de 0,1% a 20% do faturamento das empresas e de proibir o licitante fraudador de receber incentivos fiscais e de bancos públicos. O BNDES, por exemplo, realiza empréstimos a taxas de juros subsidiados pelo Tesouro Nacional, que de 2008 a 2014 injetou cerca de R$ 500 bilhões no banco para ampliar os financiamentos.
CA - Como corrigir esses problemas na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Tanto a ADI quanto o Projeto do Senador Ferraço têm condições de corrigir essas falhas legislativas que podem fazer da Lei Anticorrupção uma via reflexa de estímulo à corrupção. O Congresso Nacional e o STF certamente analisarão esses aspectos e promoverão a devida correção para que o Brasil tenha condições de combater, de fato, a corrupção e garantir melhores serviços públicos a seus cidadãos.
CA - Há experiências bem-sucedidas de responsabilização de pessoas jurídicas no Brasil?
Lucieni Pereira - Sim. A Lei nº 9.605, de 1998, é o melhor exemplo de regulamentação que observa as regras e princípios constitucionais, prevendo sanções administrativas e penais para empresas que praticam atividades lesivas ao meio ambiente, independentemente da obrigação de reparar o dano.
Analisando a questão de uma forma mais abrangente, a Lei de Improbidade Administrativa, de 1992, também possibilita que a decisão do juiz na esfera cível alcance a pessoa jurídica, ainda que de forma indireta, quando o sócio majoritário for responsabilizado. Pela Lei, a empresa fica impedida de contratar com o Poder Público e receber benefícios fiscais ou creditícios.
O Relatório Final elaborado pela Comissão de Reforma do Código Penal constituída pelo Senado Federal também propõe a responsabilização criminal da pessoa jurídica por atos praticados contra a administração pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
A Comissão foi presidida pelo Ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, tendo como integrantes a Ministra Maria Thereza Moura, também do STJ, os advogados Antonio Nabor Areias Bulhões, Técio Lins e Silva entre outros, o Desembargador José Muiños Piñeiro Filho do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e diversos outros integrantes.
CA - Existe polêmica quanto à constitucionalidade dessas Leis?
Lucieni Pereira - Pode-se dizer que não. Para o STF, por exemplo, é “admissível a condenação de pessoa jurídica pela prática de crime ambiental, ainda que absolvidas as pessoas físicas ocupantes de cargo de presidência ou de direção do órgão responsável pela prática criminosa”, conforme decidido recentemente no Recurso Extraordinário nº 548.181.
CA - Quais as principais diferenças entre a Lei Anticorrupção e a Lei de Crimes Ambientais na responsabilização de pessoas jurídicas?
Lucieni Pereira - A Lei Anticorrupção, embora assim batizada, prevê multa e penas restritivas para empresa na esfera cível, enquanto a Lei de Crimes Ambientais responsabiliza a pessoa jurídica com multa e penas restritivas na esfera criminal. As sanções são muito parecidas, em muitos casos idênticas, apenas o processamento se dá em esferas diferentes.
O problema está na responsabilização administrativa e sua interferência descabida nas decisões dos magistrados. Na Lei de Crimes Ambientais, multas e penas restritivas na esfera administrativa são mais brandas, como devem ser, e aplicadas por agentes concursados de instituições de fiscalização que exercem poder de polícia em decorrência da regulação e fiscalização do licenciamento ambiental, sem qualquer interferência nas sanções que serão aplicadas pelo magistrado na esfera criminal.
Já na Lei Anticorrupção, a aplicação de multa administrativa fica a cargo de autoridades de milhares de órgãos e entidades públicos que não detêm poder de polícia em razão de suas competências precípuas. Para agravar a situação, a celebração de acordos de leniência administrativos afasta a competência do juiz de aplicar multa e proibir a empresa de receber benefícios fiscais e creditícios no processo instaurado na esfera cível.
CA - Quais os principais vícios de competência previstos na Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - Há dispositivos na Lei Anticorrupção que afrontam regras e princípios básicos da Constituição de 1988, com violação inaceitável de competência dos órgãos de controle autônomos pelo Poder Executivo. Na Lei de Crimes Ambientais, tanto a ‘transação penal’, que substitui a ação penal por multa e reparação do dano, quanto a suspensão do processo vinculada a cumprimento de condições fixadas na própria Lei são de competência do Ministério Público, que submete as propostas à homologação ou não do Poder Judiciário, que dará a palavra final.
A falta de razoabilidade na Lei Anticorrupção está presente, por exemplo, na tentativa de resolver, no âmbito do próprio Poder Executivo, atos gravíssimos de corrupção e fraude à licitação praticados por milhares de órgãos e entidades dos entes das três esferas de governo, de forma que pode prejudicar a condução das ações do Ministério Público, Tribunal de Contas e Poder Judiciário. Isso é inaceitável em um Estado de Direito.
CA - Quais as medidas necessárias para ‘salvar’ a Lei Anticorrupção?
Lucieni Pereira - É preciso abrir a discussão no Congresso Nacional para que as instituições de controle incumbidas da missão de prevenção e combate à corrupção, em conjunto com as entidades de classe e sociedade civil, discutam alterações capazes de alinhar a Lei Anticorrupção aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que tem como pressuposto a independência e separação dos Poderes, o direito à exploração de atividade econômica pelas empresas em ambiente seguro e a proteção do patrimônio público de forma que privilegie o interesse dos cidadãos. Sem um debate franco acerca dos problemas identificados na Lei em questão, dificilmente haverá combate efetivo à corrupção no Brasil.
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