domingo, 21 de dezembro de 2014

A política como apostolado




Manifestação contra o governo Dilma em São Paulo, dia 15 de novembro.
Manifestação contra o governo Dilma em São Paulo, dia 15 de novembro.
Ainda estamos vivendo uma espécie de ressaca das eleições presidenciais. Durante o período eleitoral, paixões foram excitadas, posições, tomadas, e muita gente, especialmente nas redes sociais, entrou de cabeça no clima de disputa que se estabeleceu. Tivemos uma das campanhas mais acirradas – e mais baixas (mas nesse mérito não entrarei) – da nossa história recente. Essa atmosfera de acirramento não é algo puramente fabricado pelas forças políticas que disputaram o pleito presidencial: é um sentimento latente que foi criado e cuidadosamente alimentado, ainda que sem querer, pelo partido que está no poder há 12 anos. Motivos há, e os há em abundância, para se indignar.
Não quero repisar nesse texto coisas que gente muito mais experiente e sábia do que eu tem falado há anos – que é preciso ocupar espaços sensíveis na sociedade, sobretudo meios de comunicação e sistema de ensino, ter líderes preparados, criar uma militância, etc. –, mas tratar de um aspecto comumente ignorado quando se trata de política: o espírito apostólico. Sim, eu sei que é muito estranho ver essa palavra associada à política. O termo “apostolado” é quase exclusivamente aplicado a assuntos que envolvam religião, e, no geral, tendemos a pensar que misturar religião com política é, no mínimo, um infeliz equívoco. Essa sensação inicial, se receber a atenção que não merece, pode nos impedir de analisar o significado de um apostolado político.
Uma das melhores definições do que vem a ser um apóstolo foi feita por um homem que, como acontece frequentemente com grandes mentes produzidas pela Humanidade, é um quase completo desconhecido nessas paragens tupiniquins: Anacleto González Flores. Anacleto foi jornalista, advogado e um dos mártires da Cristiada, a revolta dos católicos mexicanos contra o governo autoritário de Plutarco Elías Calles. Em um artigo que publicou no dia 13 de outubro de 1917, Anacleto traça as seguintes linhas em seu peculiar estilo passional:
O apóstolo é um homem que, estando profundamente apaixonado por uma ideia, faz dela o pensamento único de sua vida, o objeto de seu amor, o ideal supremo de sua existência; e, por mais que seja censurado e ridicularizado, ele é, foi e continuará sendo o árbitro do destino dos povos, porque com sua ação constante, perpétua e incansável conquistará as inteligências, subjugará os corações, será dono das vontades e a humanidade lhe pertencerá inevitavelmente.
O mártir cristero tinha bastante ciência do que dizia, e pagou as palavras com a própria vida. Hoje, na sociedade em que vivemos, julgo improvável que venhamos a ter um destino semelhante, mas o remédio de que carecemos é o mesmo: assumir um verdadeiro espírito apostólico. E, para isso, é preciso ter em mente que necessitamos de algumas coisas às quais não estamos acostumados – coisas cuja mera ideia já nos parece inconveniente, como se precisássemos assumir uma distância higiênica.
Não existe apostolado sem sacrifício – sacrifício de lazer, de horas de sono, de dinheiro, e, quando necessário, até mesmo do convívio daqueles que amamos; das comodidades do dia-a-dia, de uma refeição feita com calma à mesa familiar, das leituras e das atividades prazerosas. Também não existe apostolado sem constância – aproveitar todas as oportunidades que todo dia nos oferece para esclarecer e instigar, questionar e provocar. E, por fim, não existe apostolado sem prudência – não o que se chama comumente de prudência, um misto de astúcia e covardia, mas a virtude da prudência: conhecer objetivamente a realidade que nos cerca, as situações que se avizinham, as circunstâncias nas quais podemos realizar nosso trabalho e, então, agir.
É preciso ter cuidado para que esse clima de ressaca eleitoral não seja apenas isso. Há também que se trabalhar com base em coisas concretas, palpáveis, que estejam presentes de modo muito vivo no cotidiano das pessoas e que falem a elas sem abstrações inócuas. Se o nosso desejo de melhorar a realidade não partir do conhecimento e da concretude da vida cotidiana, e se não estiver esse sentido de missão perpétua, tudo o que fizermos será como um castelo de areia à beira-mar. “Se as gerações dos nossos dias – escreveu Anacleto – hão de se salvar do naufrágio em que estão se perdendo e se precipitando os povos, somente o farão com a abnegação, com o exemplo e, se for necessário, com o martírio do apóstolo”.
Felipe Melo

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