sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O excesso de leis e a distorção da liberdade




Estátua do titã Atlas na frente do Rockfeller Center, em Nova York. Ao fundo, a Catedral de São Patrício.
Estátua do titã Atlas na frente do Rockfeller Center, em Nova York. Ao fundo, a Catedral de São Patrício.
A liberdade sempre foi uma das coisas mais desejadas e menos compreendidas pelo homem. Diante de todas as possibilidades e de todas as responsabilidades que a liberdade confere, o homem frequentemente se vê entre duas armadilhas: a libertinagem, que consiste em ver a verdadeira liberdade na ausência de amarras e obrigações; e o puritanismo, que defende o estabelecimento de estritos limites para toda e qualquer ação, por mais insignificante que pareça, de modo a evitar todo mau uso possível da liberdade. Por mais que sejam, na prática, bastante distintas em suas manifestações, ambas as posturas possuem a mesma origem – a recusa do indivíduo em assumir o ônus, seja ele qual for, de fazer as próprias escolhas.
As leis, nesse sentido, são (ou deveriam ser) feitas para proteger a liberdade do homem. O filósofo e economista francês Frédéric Bastiat, em seu belo ensaio “A Lei” (1850), lembra que “foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer as leis”, e não o contrário. E continua:
Cada um de nós tem o direito natural, recebido de Deus, de defender sua própria pessoa, sua liberdade, sua propriedade. Estes são os três elementos básicos da vida, que se complementam e não podem ser compreendidos um sem o outro. E o que são nossas faculdades senão um prolongamento de nossa individualidade? E o que é a propriedade senão uma extensão de nossas faculdades?
É de se pensar, portanto, que, sendo a liberdade um dos elementos básicos da vida humana, a lei deve se abster de assumir contornos que sufoquem sem justo motivo a liberdade do homem. Quando a lei – em última instância, o Estado – se arroga o dever de determinar toda e qualquer ação que deve ser (ou deixar de ser) tomada pelo homem, estabelece-se uma atmosfera em que o exercício da verdadeira liberdade é bastante difícil. Um exemplo prático disso, por mais corriqueiro e simplório que pareça, pode ser encontrado com facilidade no cotidiano do brasileiro: o Padrão Brasileiro de Plugues e Tomadas. Ao obrigar toda a população brasileira, bem como os fabricantes de eletrodomésticos de todo tipo, a utilizar apenas um padrão de tomadas, o Estado mostra que está disposto a se intrometer em todos e qualquer aspecto da vida do cidadão brasileiro.
A abundância de leis desse tipo que são confeccionadas, aprovadas e sancionadas produz efeitos imediatos bastante incômodos, e, normalmente, prestamos atenção apenas a esses efeitos. No entanto, existe um efeito de longo prazo que é produzido pelo excesso de legislação que muitas vezes não é levado em consideração, mas cujas consequências sentimos na pele todos os dias.
Quando o homem se vê em face de uma quantidade inumana de leis, regulamentos e normas que deve conhecer e obedecer, é inevitável que ele escolha quais leis merecem sua obediência e quais devem ser ignoradas. Temos no Brasil até mesmo um jargão para isso: para uma lei valer, ela precisa “colar”. De modo a mantermos a própria sanidade e não nos vermos sufocados por uma enormidade de regras, acabamos por fazer essa escolha. É instintivo.
O problema de longo prazo que reside nesse mecanismo de sobrevivência é que, com o passar do tempo, perdemos a reverência pelas leis – e, no fim das contas, pelas próprias autoridades, sejam elas quais forem. Deixamos de pensar que algumas leis devem ser ignoradas – algo muitas vezes legítimo do ponto de vista moral – e passamos a pensar que toda e qualquer lei pode ser ignorada. O critério deixa de ser algo objetivo e passa a ser meramente subjetivo: obedecer à lei se transforma em um exercício de conveniência pessoal.
Não quero, com esse raciocínio, justificar qualquer atitude criminosa. Mesmo que não tivéssemos no Brasil a quantidade gigantesca de regulamentos que temos hoje, ainda haveria quem cometeria crimes de todo tipo. O que não teríamos – e que, justamente por essa distorção moral provocada pela pelo excesso de leis, é algo palpável no nosso cotidiano – é esse desrespeito mais ou menos generalizado pelas autoridades e pelas instituições. O cinismo prático que advém dessa distorção, no fim das contas, nos afasta de qualquer exercício legítimo e autêntico da liberdade e nos empurra, com força cada vez maior, ora à inconsequência libertina, ora à rigidez puritana.
Por Felipe Melo

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