“Por que nossos homens de ciência valem estatísticamente mais do que nossos literatos? A ciência e a tecnologia não admitem a improvisação, o papo pro ar e a facilidade, na medida em que nossos literatos crêem ingenuamente que a narrativa os permite”
Uma questão formulada por um leitor na coluna passada (O clubinho dos mervais): se acaso no Brasil a atribuição de prêmios, consagração , eleição para academias – em suma, de valor – ao escritor não teria sido desde sempre determinada muito mais por razões políticas, conveniências de conchavo, tráfico de influências do que pelo mérito efetivo dele, me fez pensar, tentar ir mais fundo nessa questão, porque, afinal de contas, ela reflete toda a problemática da sociedade brasileira.
O que é muito para o espaço desta coluna, mas vou ressaltar alguns aspectos que considero importantes.
Há uma característica fundamental: foi o “ensaísmo” que constituiu e “sistematizou”, a seu modo, o pensamento brasileiro. Dizendo de outra forma: não só no Brasil, mas em toda América Latina, a literatura foi um instrumento independente de conhecimento sociológico, muitas vezes, o único. Antes da difusão da Sociologia como disciplina acadêmica, nossos autores, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a abordavam mais como “ponto de vista” do que como pesquisa objetiva da realidade. Como um pólo de atração, a literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero de ensaio misto de história, economia, filosofia e arte, aliás, uma forma tipicamente brasileira de investigação e descoberta, mas a qual devemos a História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero ou Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
Confinado aos séculos 17,18,19, tudo bem,entende-se, mas já nos 20 e 21, naturalmente este ensaísmo se torna sinônimo de amadorismo. Contudo, apesar de, com a implantação e vigência dos padrões acadêmicos, ter sido superado, o ensaísmo em seu substrato mais negativo – o amadorismo – e seus sujeitos – o elemento da oligarquia abastada, o político rico, que fala e escreve, constituindo o único registro duma voz pública nacional – persiste no inconsciente profundo do país, razão porque o passado colonial retorna (“o retorno do reprimido”) sobretudo mediante as atuais condições regressivas e barbarizantes, dado o império dum capitalismo de espoliação.
Jung explica: quando em estado regressivo, o homem esquece o revólver e passa a usar arco e flecha (donde os mervais, marco macieis, pitanguys, sarneys & paulos coelhos). Explica, mas não justifica.
Resta então falar do ofício do escritor. Parafraseando Cortázar: a raiz moral do que está acontecendo literariamente, isto que, antes das influências negativas (e estas são legião), já está atuando por nossa própria índole: o fato de ser brasileiro. Em literatura sofremos, como em muitas outras coisas, das desvantagens das nossas vantagens: inteligentes, adaptáveis, rápidos para captar coisas no ar, nos damos ao triste luxo de não acatar a distância elementar que vai do jornalismo à literatura, do amadorismo à profissão, da vocação à obra.
Por que nossos homens de ciência valem estatísticamente mais do que nossos literatos? A ciência e a tecnologia não admitem a improvisação, o papo pro ar e a facilidade, na medida em que nossos literatos crêem ingenuamente que a narrativa os permite. Nas letras, a facilidade brasileira se traduz em suficiência, em algo como um “direito divino de escrever” impecavelmente. Assim, um belo dia, nos decretamos escritores, sem noviciato e sem velar armas, passando de vagas leituras à volumosa redação do nosso primeiro romance (cruzes!).
Se alguém disser que Balzac ou Flaubert ou D.H.Lawrence não precisaram de tanto esforço para produzir obras-primas, é porque se esquece que tanto uns quanto outros (gênios à parte) saíam para lutar com armas afiadas coletivamente por séculos de tradição intelectual, estética e literária, enquanto nós somos forçados a criar uma língua que primeiro deixe para trás Jorges Amados, Paulos Coelhos e outras múmias de vendagem tupiniquim, que torne a descobrir o português brasileiro que deu Machado e Drummond e Rosa e Rubem Fonseca, que saiba inventar, que saiba matar à direita e à esquerda como toda língua realmente viva, para que esta liquidação geral de todas as inércias e facilidades nos leve algum dia a um estilo nascido de uma lenta e árdua meditação da nossa realidade e da nossa palavra.
Quanto ao espírito da ABL: lamentável que, aqui, tristemente, se intrometa outra vez a falta de vontade de lutar, a ingenuidade e a canalhice de querer recolher a presa sem ter dado um único golpe.
O que é muito para o espaço desta coluna, mas vou ressaltar alguns aspectos que considero importantes.
Há uma característica fundamental: foi o “ensaísmo” que constituiu e “sistematizou”, a seu modo, o pensamento brasileiro. Dizendo de outra forma: não só no Brasil, mas em toda América Latina, a literatura foi um instrumento independente de conhecimento sociológico, muitas vezes, o único. Antes da difusão da Sociologia como disciplina acadêmica, nossos autores, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a abordavam mais como “ponto de vista” do que como pesquisa objetiva da realidade. Como um pólo de atração, a literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero de ensaio misto de história, economia, filosofia e arte, aliás, uma forma tipicamente brasileira de investigação e descoberta, mas a qual devemos a História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero ou Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
Confinado aos séculos 17,18,19, tudo bem,entende-se, mas já nos 20 e 21, naturalmente este ensaísmo se torna sinônimo de amadorismo. Contudo, apesar de, com a implantação e vigência dos padrões acadêmicos, ter sido superado, o ensaísmo em seu substrato mais negativo – o amadorismo – e seus sujeitos – o elemento da oligarquia abastada, o político rico, que fala e escreve, constituindo o único registro duma voz pública nacional – persiste no inconsciente profundo do país, razão porque o passado colonial retorna (“o retorno do reprimido”) sobretudo mediante as atuais condições regressivas e barbarizantes, dado o império dum capitalismo de espoliação.
Jung explica: quando em estado regressivo, o homem esquece o revólver e passa a usar arco e flecha (donde os mervais, marco macieis, pitanguys, sarneys & paulos coelhos). Explica, mas não justifica.
Resta então falar do ofício do escritor. Parafraseando Cortázar: a raiz moral do que está acontecendo literariamente, isto que, antes das influências negativas (e estas são legião), já está atuando por nossa própria índole: o fato de ser brasileiro. Em literatura sofremos, como em muitas outras coisas, das desvantagens das nossas vantagens: inteligentes, adaptáveis, rápidos para captar coisas no ar, nos damos ao triste luxo de não acatar a distância elementar que vai do jornalismo à literatura, do amadorismo à profissão, da vocação à obra.
Por que nossos homens de ciência valem estatísticamente mais do que nossos literatos? A ciência e a tecnologia não admitem a improvisação, o papo pro ar e a facilidade, na medida em que nossos literatos crêem ingenuamente que a narrativa os permite. Nas letras, a facilidade brasileira se traduz em suficiência, em algo como um “direito divino de escrever” impecavelmente. Assim, um belo dia, nos decretamos escritores, sem noviciato e sem velar armas, passando de vagas leituras à volumosa redação do nosso primeiro romance (cruzes!).
Se alguém disser que Balzac ou Flaubert ou D.H.Lawrence não precisaram de tanto esforço para produzir obras-primas, é porque se esquece que tanto uns quanto outros (gênios à parte) saíam para lutar com armas afiadas coletivamente por séculos de tradição intelectual, estética e literária, enquanto nós somos forçados a criar uma língua que primeiro deixe para trás Jorges Amados, Paulos Coelhos e outras múmias de vendagem tupiniquim, que torne a descobrir o português brasileiro que deu Machado e Drummond e Rosa e Rubem Fonseca, que saiba inventar, que saiba matar à direita e à esquerda como toda língua realmente viva, para que esta liquidação geral de todas as inércias e facilidades nos leve algum dia a um estilo nascido de uma lenta e árdua meditação da nossa realidade e da nossa palavra.
Quanto ao espírito da ABL: lamentável que, aqui, tristemente, se intrometa outra vez a falta de vontade de lutar, a ingenuidade e a canalhice de querer recolher a presa sem ter dado um único golpe.
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